Flamengo e as dores do crescimento
- Entrelinhas
- 18 de jul. de 2020
- 4 min de leitura
Participação de Manu Montenegro
Em participação especial no Entrelinhas, o cronista Manu Montenegro analisou a saída do técnico Jorge Jesus, do Flamengo para o Benfica. Ele descreveu o lado da torcida, que perdeu o treinador campeão da Libertadores da América, Campeonato Brasileiro, Carioca, Supercopa do Brasil e Recopa Sul-Americana
Depois de perder Jorge Jesus, que deixou o Flamengo depois do melhor ano da vida (dele e da nossa), a torcida do Flamengo chora, traída. Os durões vão chorar à noite, escondidos no escuro das cobertas, mas também os durões hoje choram. A turma dos rancorosos não perdoa a falta de transparência no arrastado processo de transferência do treinador, depois de uma renovação de contrato que se arrastou por muito mais tempo e que nos prometia um ano de alívio. Nos quatro cantos do país, há quem acuse o português de dizer uma coisa e fazer outra. Esse pecado (logo esse!), o mais brasileiro dos pecados, talvez seja o que mais nos custe relevar no comportamento de um estrangeiro que tratamos tão bem.
Depois de perder Jorge Jesus, a torcida do Flamengo também se sente abandonada. O que acontece agora com as promessas que nos fizemos? O pacto de voltarmos ao Mundial, e dessa vez vencê-lo? O que dizer dos recordes que bateríamos, necessariamente, com uma campanha ainda mais avassaladora no Brasileirão? Com que cara vou repetir para os amigos que, com o Liverpool eliminado na Liga dos Campeões, só o novo coronavírus seria capaz de parar o Flamengo este ano?
Ninguém esperava mais adversários à altura do novo Mengão. Daqui para frente, os anos simplesmente se sucederiam como a continuação natural de uma hegemonia. Era o nosso velho Flamengo de guerra crescendo e assumindo uma dimensão inédita. Para a minha geração, que foi doutrinada na catequese de São Zico e “Dezembro de Oitenta e Um!!!”, não se tratava do fim da história. Ao contrário, agora era a nossa vez de ver a história sendo feita. Finalmente teríamos o que contar aos filhos e netos sobre o grande Flamengo que vimos jogar com nossos próprios olhos, o Flamengo das nossas vidas, do goleiro ao “ponta-esquerda”.
Por todas essas expectativas frustradas é que o silêncio de Jesus nos perturbou – e ainda nos perturba – tanto. Será que esse cara é o mesmo que nós todos conhecíamos tão bem? Onde está agora o Jesus sincericida das declarações que viraram memes, o Jesus bondoso que fez doações a obras de caridade de um país que não era o seu, o Jesus líder que nunca desistiu de Lincoln, que nunca desistiu de Vitinho, que nunca desistiu de Diego Ribas, até os últimos minutos da finalíssima da Libertadores? O Jesus fazia o papel do messias que nós atribuíamos ao Zico, aposentado três décadas atrás.
O Jesus obcecado com a vitória berrando à beira do campo encarnava o que sempre esperamos de qualquer treinador do Flamengo, uma extensão raçuda dos 11 em campo. Ultimamente ele nem era mais visto gritando à beira do campo – certamente, um sinal de que já tínhamos iniciado a descida para o pouso. Muitos de nós seguimos acreditando num desfecho contrário. Como naqueles relacionamentos que dobraram a esquina do fracasso sem que a gente se desse conta.
Jorge Jesus no comando do Flamengo na Supercopa do Brasil 2019 contra o Athletico-PR - Foto: Pedro Marra
Depois de perder Jorge Jesus, a torcida do Flamengo está dividida. Sim, pois também há aqueles rubro-negros saudosos que perdoarão tudo e todos em nome da graça alcançada nesse ano que acabou. Compreende-se. Todos nós nos sentimos melhor ao externar gratidão a terceiros; a prática é ensinada como técnica de redução de ansiedade, inclusive. Mas há um interesse egocêntrico nesse nobre gesto de desculpar o herói que acaba de nos abandonar. Ou alguém dúvida de que o motivo desse perdão não seja as vantagens que essa relação profissional entre JJ e CRF nos proporcionou até aqui?
Independentemente do sentimento que nos domine a essa altura do campeonato (modo de dizer), que tal se tomássemos uma distância desse sofrimento por uns instantes? Se nós olhássemos à volta, o que veríamos? Nada além das nuvens. E ninguém, porque aqui no topo da montanha não cabem dois campeões. Não existem dois melhores. Talvez nos seja difícil aceitar a solidão da excelência, principalmente depois de passarmos anos vivendo uma existência intermediária, às vezes medíocre, numa hora rumo a Tóquio, na outra esse ano cai. Já nos iludimos e nos deixamos iludir pelas mentiras mais mal contadas. Somos Flamengo, somos doentes, mas não sem motivos.
Talvez soframos as dores do crescimento. Dores reais, sem dúvida, mas ainda mais doídas por serem uma novidade na nossa vida de altos e baixos. Não estamos acostumados a sofrer desse mal nem temos ninguém para nos acalmar e dizer que vai passar. Pior, acabamos de perder a nossa figura paterna, querida e admirada. Como temos o hábito de não permitir aos nossos pais outros papéis sociais – o de bípede que sente tesão, por exemplo –, ninguém lembra que o nosso super herói que nos levaria de volta ao Olimpo também é um trabalhador que finalmente tem poder de barganha suficiente para negociar com o patrão e se dar ao luxo de ter uma “pretensão salarial” que não seja retórica. Ainda mais no meio de uma crise, às portas da aposentadoria.
Os cientistas não chegam a um consenso sobre o que causa as dores do crescimento.
Nem nós sabemos dizer exatamente do que sofremos.
Se me permitirem um palpite, talvez nosso problema seja fisiológico, e não psicológico. Talvez soframos de uma bursite no ombro ocasionada pelo movimento repetitivo de levantar troféus.
*Texto com opinião de Manu Montenegro
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